sábado, 5 de fevereiro de 2011

UM POVO DESAFIA SEU DITADOR

Mestre EDU

Um povo desafia o seu ditador

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Manifestantes egípcios enfrentam canhões de água e gás lacrimogéneo durante as batalhas generalizadas travadas no Cairo.

Pode ser o fim. É certamente o começo do fim. Por todo o Egipto, dezenas de milhares de árabes enfrentaram ontem gás lacrimogéneo, ganhos de água, granadas atordoantes e fogo real para exigir a remoção de Hosni Mubarak após mais de 30 anos de ditadura.

E quando o Cairo jaz ensopada sob nuvens de gás lacrimogéneo de milhares de latas disparadas sobre multidões densas pela polícia de choque, parece que o seu domínio se aproxima do fim. Ontem nenhum de nós nas ruas do Cairo sabia onde estava Mubarak – que mais tarde apareceria na televisão para demitir o seu gabinete. E descobri que ninguém se importava.

Eles foram corajosos, em grande medida pacíficos, estas dezenas de milhares, mas o comportamento chocante dos polícias à paisana de Mubarak – os battagi, a palavra significa literalmente “bandidos” em árabe – que batiam, golpeavam e assaltavam manifestantes enquanto os polícias observavam e nada faziam, foi uma desgraça. Estes homens, muitos deles ex-polícias viciados em droga, na noite passada foram a linha de frente do estado egípcio. Os verdadeiros representantes de Hosni Mubarak quando polícias uniformizados despejavam gás sobre as multidões.

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Clique para ampliar. Houve um ponto na noite passada em que latas de gás continuavam a lançar fumo sobre as águas do Nilo quando a polícia de choque e manifestantes combatia sobre as pontes do grande rio. Era incrível, um povo levantado que não mais aceitava violência e brutalidade e prisão como seu destino na maior nação árabe. E os próprios polícias podem estar a quebrar: “O que podemos fazer?”, perguntou-nos um da polícia de choque. “Temos ordens. Pensa que queremos fazer isto? O país está a ir abaixo”. O governo impõe um cessar-fogo na noite passada quando manifestantes ajoelharam-se a orar em frente da polícia.

Como descrever um dia que pode demonstrar-se ser uma página tão gigantesca na história do Egipto? Talvez os repórter devam abandonar as suas análises e apenas contar o relato do aconteceu desde a manhã até à noite numa das mais antigas cidades do mundo. Assim, aqui está, a estória da minhas notas, rabiscadas em meio a um povo desafiante em face de milhares de polícias à paisana e polícias uniformizados.

Começou na mesquita Istikama na Praça Giza: uma feia passagem de escalavrados blocos de apartamentos em betão e uma linha de polícia de choque que se estendia até o Nilo. Todos nós sabíamos que Mohamed El Baradei estaria ali para as orações do meio-dia e, a princípio, a multidão parecia pequena. Os polícias fumavam cigarros. Se isto era o fim do reinado de Mubarak, era um arranque pouco impressionante.

Mas então, não muito depois de as últimas orações terem sido expressas naquela multidão de crentes, levantaram-se da rua, viraram-se para a polícia. “Mubarak, Mubarak”, gritavam eles. “A Arábia Saudita está à sua espera”. Foi quando os canhões de água foram disparados sobre a multidão – a polícia tinha toda a intenção de combate-los apesar de nem mesmo uma pedra ter sido lançada. A água irrompia dentro da multidão e então as mangueiras foram apontadas directamente a El Baradei, o qual cambaleou para trás, encharcado.

Ele havia retornado de Viena poucas horas antes e poucos egípcios pensam que dirigirá o Egipto – ele diz que quer ser um negociador – mas isto foi uma desgraça. O mais honrado político egípcio, um vencedor do Prémio Nobel que manteve cargo de principal inspector nuclear da ONU, foi encharcado como um garoto da rua. Eis o que Mubarak pensa dele, suponho: apenas um outro perturbador com uma “agenda oculta” – que é realmente a linguagem que o governo egípcio está a usar neste momento.

E então o gás lacrimogéneo arrebentou sobre as multidões. Talvez houvesse uns poucos milhares agora, mas quando passeei junto a eles, algo notável aconteceu. Dos blocos de apartamento e de becos escuros, das ruas da vizinhança, centenas e a seguir milhares de egípcios enxamearam para a estrada conduzindo à Praça Tahrir. Isto é uma táctica que a polícia decidiu impedir. Ter detractores de Mubarak no próprio centro do Cairo sugeriria que o seu domínio já estava acabado. O governo havia cortado a Internet – cortando o Egipto do resto do mundo – e extinguido todos os sinais de telemóvel. Não fez diferença.

“Queremos a queda do regime”, bradavam as multidões. Talvez não o mais memorável brado de revolução mas eles o gritavam muitas vezes até serem abafados pelo estouro das granadas de gás lacrimogéneo. De todo o Cairo vinham em ondas para a cidade, jovens classe média de Gazira, os pobres dos bairros de lata de Beaulak al-Daqrour, marchando firmemente através das pontes do Nilo como um exército – o que, admito, era o que eram.

Mas o gás das granadas chovia sobre eles. Tossindo e com ânsias de vómito, eles marchavam em frente. Muitos mantinham os casacos sobre as bocas ou faziam fila numa loja de limões onde o proprietário espremia o fruto fresco nas suas bocas. O sumo de limão – um antídoto para o gás lacrimogéneo – entornava sobre o pavimento até a sarjeta.

Isto foi no Cairo, naturalmente, mas estes protestos estavam a ter lugar por todo o Egipto, no mínimo em Suez, onde 13 egípcios foram mortos. As manifestações começavam não só em mesquitas como também em igrejas coptas. “Sou cristão, mas sou egípcio em primeiro lugar”, disse-me um homem chamado Mina. “Quero que Mubarak se vá”. E aqui chegaram os primeiro bataggi, empurrando à frente das fileiras da polícia a fim de atacar os manifestantes. Eles tinham bastões de metal e cassetetes de polícia – vindos de onde? – e varas aguçadas. Poderiam ser processados por crimes graves se o regime Mubarak cair. Eles eram maldosos. Um homem chicoteou um jovem sobre as costas com um longo cabo amarelo. Ele uivou com o sofrimento. Por toda a cidade, os polícias postavam-se em fileiras, legiões delas, com o sol a cintilar sobre os seus visores. A multidão deveria estar temerosa, mas a polícia olhava ameaçadoramente, como pássaros encapuzados. Então os manifestantes atingiram a margem Leste do Nilo.

Uns tantos turistas foram envolvidos neste espectáculo – vi três senhoras de meia-idade sobre uma das pontes do Nilo (os hotéis do Cairo, naturalmente, não haviam dito aos seus hóspedes o que estava a acontecer) – mas a polícia decidiu que controlaria a extremidade Leste do tabuleiro da ponte. Eles abriram as suas fileiras outra vez e enviaram os bandidos para bater na vanguarda dos manifestantes. E foi neste momento que o envenenamento por gás lacrimogéneo começou a sério, centenas e centenas de latas choviam sobre as multidões que marchavam de todas as estradas para dentro da cidade. Ele picava os nossos olhos e fazia-nos tossir e respirar com dificuldade. Homens estavam a ser nauseados junto a lojas com as frentes fechadas.

Incêndios parecem ter estalado na noite passada próximo da sede do NDP, o partido que carimbava as ordens de Mubarak. Um cessar-fogo foi imposto e os primeiros relatos falam de tropas na cidade, o sinal fatal de que a polícia perdeu o controle. Abrigámo-nos no antigo Café Riche perto da Praça Telaat Harb, um pequeno restaurante e bar com funcionários vestidos de azul; e ali, a bebericar o seu café, estava o grande escritor egípcio Ibrahim Abudul Meguid, mesmo à nossa frente. Era como encontrar-nos com Tólstoi a almoçar em meio à Revolução Russa. “Não houve reacção de Mubarak!” exaltou-se ele. “É como se nada houvesse acontecido! Mas eles conseguirão – o povo conseguirá!” Os clientes sentados sufocados com o gás. Foi uma daquelas cenas memoráveis que ocorrem em filmes e não na vida real.

E havia um homem idoso sobre o pavimento, com uma mão sobre os olhos a arder. O coronel reformado Weaam Sali do Exército egípcio, usando as suas fitas de medalhas da guerra de 1967 com Israel – a qual o Egipto perdeu – e da guerra de 1973, a qual o coronel pensa que o Egipto venceu. “Estou a deixar as fileiras dos soldados veteranos”, disse-me ele. “Estou a aderir aos manifestantes”. E o que dizer do Exército? Ao longo do dia não o vimos. Os seus coronéis, brigadeiros e generais estiveram silenciosos. Estariam à espera até que Mubarak impusesse a lei marcial?

As multidões recusaram-se a cumprir o toque de recolher. Em Suez, elas atearam fogo aos camiões da polícia. Em frente ao meu hotel, tentaram empurrar um outro camião para dentro do Nilo. Eu não podia voltar ao Cairo Ocidental através das pontes. O gás das granadas ainda estava a evolar-se para o Nilo. Mas um polícia finalmente teve pena de nós – uma qualidade, tenho de dizer, que ontem não esteve muito em evidência – e levou-nos para a margem própria do Nilo. E havia um velho barco a motor, da espécie turística, com flores de plástico e um proprietário receptivo. Assim, navegámos de volta com estilo, bebericando Pepsi. E então um veloz barco amarelo surgiu subitamente com dois homens a fazerem sinais de vitória para as multidões nas pontes, com uma garota de pé atrás, a segurar um enorme estandarte nas mãos. Era a bandeira do Egipto.

por Robert Fisk, no Cairo
29/Janeiro/2011

O original encontra-se em www.independent.co.uk/…

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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